terça-feira, 18 de outubro de 2011

Carta nº 2

caro desconhecido (ou cara desconhecida),

hoje, e a dor é intensa, quase desesperada, como se não pudesse existir um dia mais.
uma parte de um poema de uma poetisa alemã chamada Eva Christina Zeller:

nem os meus gritos,
nem a minha surdez,
te comovem a ponto de eu ver.

pergunto: e nesta cidade de ruídos, de ruídos fortes porque não posso eu gritar? porque não pode meu grito percorrer o ruído?

domingo, 9 de outubro de 2011

Carta nº 1

caro,


como começar um blog em que o propósito é essa ideia antiga, quase longínqua, das cartas manuscritas, num tempo, num espaço que já não é o seu, é um outro? como desafiá-lo a responder às mesmas, com novas cartas e iniciarmos um espaço de encontros, que se desejam longos, interactivos, cheios de uma ternura pelo outro, quase sem rosto do outro lado? um rosto que se vai construindo no tempo, com tempo, no seu ritmo lento e próprio, próprio de um outro tempo.
e começar por onde? o que tenho eu para lhe dizer para que possamos iniciar este diálogo?
começo, começo devagar, sonhando com o tempo da terra impregnada de cheiros intensos, de um ritmo pausado, quase intemporal, o ritmo do respirar da própria terra. nesse tempo, agora habitado por esqueletos, não em armários, mas à solta, semi-loucos dentro de mim, nesse tempo dizia-lhe eu - hoje é quase um tempo de brumas, de um nevoeiro que cerca a memória, estranho, alheado do suave bater do coração - dançava e corria no meio do milho espalhado num varandim reclinado sobre os montes, e os cobertores eram cerrados para que o calor ali repousasse, numa outra estação, em que as árvores já não desabrochavam e a melancolia do frio fazia as flores esconderem-se no cerne dos seus troncos rijos e imóveis.
nesse tempo, não havia ainda corpos jovens debruçados e empenhados no amor, era demasiado cedo, e o meu corpo esse era quase infantil, e crescia, crescia, crescia, alcançando um espaço conquistado ao futuro. era o tempo das descobertas, das revelações e dos silêncios. o vento, esse, nem voz tinha, como se envergonhado não quisesse perturbar-me com a sua presença. retorno agora, neste, a esta cidade inóspita de tão clara que é, que tudo desnuda, descarnando a imaginação, do seu sonho, do seu prazer. sentindo como um peixe a solidão de um oceano, que o envolve e o faz perder-se. a solidão. por isso lhe escrevo querido amigo sem cheiro. tudo tem um nome: cadeira, orvalho, maça, tudo tem o seu nome sereno percorrendo toda a sua matéria material ou imaginada. este é o meu poema, carta na sua forma. escute esta canção que lhe canto, vulcânica na sua violência rubra, dolorosa como os riachos que percorrem a minha alma.
responder-lhe-ei, e aqui a sua resposta o incorporará, contra o tempo do esquecimento, de todos os esquecimentos, tendo a morte como destino último, jogando xadrez, e ficando muda perante a beleza do seu rosto fundindo-se com um outro.
e tu falaste elisabet vogler? pude ouvir a tua voz ou foi só um sonho de alma? pus a mão no teu rosto imenso, imergiu o meu corpo nesse rosto que era imenso, emergi imensamente antes de te alcançar, elisabet, imensamente elisabet?